Muitas vezes ocorre que determinada passagem das Escrituras pode ter uma referência dupla, uma imediata e local, e a outra profética e bem distante. Quando tal é o caso, há grande confusão se não reconhecemos isso e não levamos em consideração o aspecto profético da dupla referência. De maneira semelhante, já aconteceu às vezes que indivíduos recusaram aceitar a referência imediata e local, mas afirmaram que a referência só trata do lado profético e distante. Ao fazerem isso, eles foram capazes de ser indiferentes à sua própria responsabilidade no assunto. Assim foi nos dias de Ezequiel, pois ele foi comissionado para dizer aos israelitas: “Filho do homem, eis que os dacasa de Israel dizem: “Filho do homem, eis que os da casa de Israel dizem: A visão que este tem é para muitos dias, e ele profetiza de tempos que estão longe. Portanto dize-lhes: Assim diz o Senhor DEUS: Não será mais adiada nenhuma das minhas palavras; e a palavra que falei se cumprirá, diz o Senhor DEUS”. (Ezequiel 12:27-28)
A Lei da Dupla Referência é simplesmente o reconhecimento de que o cumprimento de determinada passagem das Escrituras pode não ter esgotado seu significado, mas que pode haver um cumprimento maior e posterior da passagem. Isso não é raro nas Escrituras, mas aparece numerosas vezes tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Isso se aplica tanto a eventos quanto a pessoas, pois as pessoas são muitas vezes tipos e representações de pessoas. Quem, por exemplo, imaginaria que havia algo mais do que uma referência imediata e local para Isaías e seus filhos na declaração de Isaías 8:18: “Eis-me aqui, com os filhos que me deu o SENHOR, por sinais e por maravilhas em Israel, da parte do SENHOR dos EXÉRCITOS, que habita no monte de Sião”. (Isaías 8:18) No entanto, essa declaração é citada em Hebreus 2:13 como se referindo a Cristo e Seus irmãos. Isso é simplesmente um exemplo de Dupla Referência, e onde isso não é levado em consideração, o resultado pode ser confusão, e pode haver uma incapacidade de receber toda a verdade. Essa Lei explica muitas referências no Antigo Testamento como tendo um sentido e aplicação duplos. Sem dúvida, assim como algumas pessoas do Antigo Testamento prefiguravam Cristo, de modo semelhante pessoas que há muito tempo deixaram de existir prefiguram o Anticristo em alguns lugares.
Essa Lei se encontra principalmente nas partes proféticas da Palavra, pois a profecia é muitas vezes apresentada figurativamente em alguns eventos locais. Tal caso é aquele que se acha nas predições de nosso Senhor sobre a destruição de Jerusalém, que veio a ocorrer no ano 70 d.C., que prefigura a invasão final da Terra Santa por exércitos do Anticristo, e a Grande Tribulação que então sobrevirá. Isso em nada diminui o cumprimento imediato e local, nem diminui em nada o pleno sentido e força da profecia em seu primeiro cumprimento. No caso da destruição de Jerusalém em 70 d.C., a profecia se cumpriu literalmente, e incontáveis milhares de judeus foram mortos do modo mais cruel e bárbaro que dá para imaginar. Mas esse cumprimento não esgotou a profecia, pois o Livro de Apocalipse, que foi escrito depois desse evento, ainda aguarda uma matança terrível de judeus e gentios, que reduzirá a população deste planeta à quase metade.
Jesus declarou que “naqueles dias haverá uma aflição tal, qual nunca houve desde o princípio da criação, que Deus criou, até agora, nem jamais haverá”. (Marcos 13:19) Isso é, a Grande Tribulação será um tempo de aflição que não tem paralelo na história, e do qual, em matéria de terror e selvageria, outros eventos não chegarão nem perto, de modo que é evidente que a destruição de Jerusalém não esgotou essa profecia. Desde então, já houve vários eventos que ultrapassaram em terror a destruição de Jerusalém. Por isso, o cumprimento final da profecia de Jesus ainda vai vir.
Muitos pensadores liberais e modernistas se equivocam porque, por negligência, não levam em consideração essa Lei da Dupla Referência na interpretação da Bíblia. Pois muito mais que freqüentemente eles procuram um cumprimento imediato e local de certas profecias, e quando essas não se cumpriram literalmente no tempo designado por esses indivíduos que se julgam especialistas na arte de interpretar, eles as explicam como falhas por parte de Deus. Pedro falou desses zombadores em sua época: “Sabendo primeiro isto, que nos últimos dias virão escarnecedores, andando segundo as suas próprias concupiscências, e dizendo: Onde está a promessa da sua vinda” Porque desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação”. (2 Pedro 3:3-4) Um número muito grande de pessoas quer fixar uma data final para Deus, e se Ele não cumpre Sua palavra bem na computação trivial determinada por eles, eles presumem que Ele falhou, ou então que Ele é incapaz de manter Sua palavra. Ou, eles poderão considerar algum cumprimento imediato e local ” um que talvez seja apenas um cumprimento parcial ” e achar que nada mais poderá vir da profecia. Mas na interpretação da Bíblia, seria melhor que nos lembrássemos de uma das leis básicas da Lei da Dupla Referência, que tem abertura para o cumprimento de uma profecia muito mais plena e mais tarde.
No começo deste capítulo, citamos o caso dos israelitas rejeitando a aplicação imediata e local de uma profecia, mas ainda mais comum é a aceitação da referência imediata e local e a negligência do cumprimento mais pleno e distante. Os escarnecedores mencionados acima manifestariam sabedoria muito maior se prestassem atenção ao aviso de Habacuque 2:2-3: “Então o SENHOR me respondeu, e disse: Escreve a visão e torna bem legível sobre tábuas, para que a possa ler quem passa correndo. Porque a visão é ainda para o tempo determinado, mas se apressa para o fim, e não enganará; se tardar, espera-o, porque certamente virá, não tardará”. (Habacuque 2:2-3) Essa profecia se aplica à vinda de Cristo em Seu segundo advento em Hebreus 10:37 em que esses versículos são citados em parte nesse contexto. É evidente, pois, que essa profecia tinha uma dupla referência.
Muitas profecias têm essa característica. Alguém assemelhou essas duplas referências, e o fato de que até mesmo os próprios profetas às vezes não percebiam seu duplo significado, à pessoa que observa montanhas. Essa pessoa vê só uma grande e elevada cadeia de montanhas sem discernir que há um vale amplo entre as montanhas da frente e as que ficam mais ao fundo. Até mesmo muitas das profecias da vinda de Cristo têm parte nessa natureza dupla. Uma das melhores ilustrações disso se vê na profecia de Isaías 61:1-3, que mistura elementos de ambos os Adventos de Cristo, transformando-os num só evento aos olhos do profeta. Contudo, quando Jesus pegou o rolo de Isaías e o leu na sinagoga de Nazaré, Ele separou com muita habilidade as duas partes dessa profecia mista. Ele parou de ler no meio da profecia com as palavras “Pregar o ano aceitável do Senhor”, então proclamou “Hoje se cumpriu esta Escritura em vossos ouvidos”, Lucas 4:18-21. Não se pode dizer que o restante dessa profecia se cumpriu naquele dia, nem que tenha ainda se cumprido, depois de quase dois mil anos. Mas com certeza se cumprirá no devido tempo.
Essa Lei da Dupla Referência, no que se refere a indivíduos, encontra numerosos exemplos nos livros proféticos. Principalmente em Daniel, vemos o Anticristo definitivo várias vezes retratado sob as figuras imediatas e locais do rei da Babilônia, do rei da Grécia, do rei da Síria, etc. Ninguém pode negar o cumprimento que ocorreu logo depois que a profecia foi dita. Mas também seria melhor não ignorar o fato de que essas mesmas profecias têm um segundo, ou até mesmo maior, cumprimento que ainda virá a se cumprir nos últimos dias na pessoa do Homem do Pecado.
Nós nos arriscamos a citar ainda outro exemplo de uma referência dupla no que é dito acerca de um indivíduo. Em Ezequiel 28, se faz referência ao “rei de Tiro” nos versículos 11-19, e essas palavras sem dúvida tiveram um cumprimento parcial em algum homem que ocupou essa posição e manteve esse título. Contudo, a linguagem vai além do que se poderia aplicar a algum homem, pois este é chamado de “o querubim ungido”, v. 14, “querubim protetor”, v. 16, títulos que jamais são dados a ninguém, exceto alguns do exército celestial. E é mencionado que ele esteve no Éden, o jardim de Deus, v. 13. Obviamente, deve haver uma dupla referência nesses versículos: uma a um mero homem, a outra ao próprio Satanás.
Tendo dito tudo isso, é necessário soar um aviso contra o desejo inato de sensacionalizar a Palavra de Deus tentando descobrir coisas secretas. Que nenhum estudante da Bíblia seja culpado de tentar manufaturar algum cumprimento secundário de um evento histórico. O único curso seguro é apegar-se somente a um cumprimento profético secundário onde textos posteriores declaram que existe tal cumprimento. Caso contrário, pode-se facilmente cair no engano de Orígenes de espiritualizar o que foi designado para ser aceito só literalmente.
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