sexta-feira, 15 de junho de 2012

Não mais Vivo Eu – João Calvino



Morrer para a lei é renunciá-la (Gl 2) e libertar-se de seu domínio, de modo que não mais confiamos nela, e ela não mais nos mantém cativos sob o jugo de escravidão. Ou pode significar que, visto que ela entregou a todos nós à destruição, não encontramos nela vida alguma. Esse último ponto de vista se adequa melhor. Pois ele nega que Cristo seja o autor do mal, por que a lei é mais prejudicial do que útil. A lei traz em seu próprio âmago a maldição que nos mata. Daí, segue-se que a morte efetuada pela lei é verdadeiramente implacável. Com ela é contrastada outro tipo de morte, ou seja: na comunhão vivificante da cruz de Cristo. Ele diz que, por estar crucificado juntamente com Cristo, ele pode começar a viver. A pontuação comum desta passagem obscurece seu significado. Lê-se: 'Através da lei morri para a lei, para que eu pudesse viver para Deus." Mas o contexto flui mais polidamente assim: 'Através da lei, morri para a lei", e então separadamente: "Para que eu pudesse viver para Deus, estou crucificado com Cristo."

Para que eu pudesse viver. O apóstolo mostra que o tipo de morte que os falsos apóstolos lançavam mão como base para suas querelas pode ser solicitado. Pois ele quer dizer que estamos mortos para a lei, não que podemos viver para o pecado, e, sim, para Deus. "Viver para Deus" às vezes significa regular nossa vida segundo sua vontade, de modo que nada mais cogitamos em toda a nossa vida além de sermos aprovados por ele. Mas aqui significa viver, por assim dizer, a vida de Deus. Dessa forma a antítese se harmonizará. Pois seja qual for o sentido de morrermos para o pecado, no mesmo sentido vivemos para Deus. Em suma, Paulo nos diz que essa morte não é mortal, e, sim, a origem de uma vida melhor. Pois Deus nos resgata do naufrágio da lei e, mediante sua graça, nos restaura para outra vida. Nada direi de outras interpretações. Este me parece ser o significado real do apóstolo.

Ao dizer que fora crucificado com Cristo, ele está explicando como nós, que estamos mortos para a lei, vivemos para Deus. Enxertados na morte de Cristo, extraímos uma energia secreta dela, como os brotos [extraem vida] das raízes. Também Cristo cravou [em sua cruz] o manuscrito da lei, o qual nos era contrário. Portanto, sendo crucificados com ele, somos eximidos de toda a maldição e culpa [provenientes] da lei. Atacar e descartar esse livramento é fazer a cruz de Cristo algo vazio e fútil. Lembremo-nos, porém, que somos libertados do jugo da lei somente quando somos feitos um com Cristo, como os brotos extraem das raízes sua seiva somente pelo desenvolvimento de uma só natureza.

Não mais eu. O termo morte é sempre odioso ao espírito humano. Havendo dito que estamos pregados na cruz juntamente com Cristo, ele acrescenta que tal fato nos faz vi-vos. Ao mesmo tempo, ele explica o que quer dizer com "viver para Deus". Ele não vive através de sua própria vida, mas é animado pelo poder secreto de Cristo, de modo que se pode dizer que Cristo vive e cresce nele. Porque, assim como a alma energiza o corpo, também Cristo comunica vida a seus membros. Eis uma notável afirmação, ou seja, que os crentes vivem fora de si mesmos [fideles extra se vivere], isto é, em Cristo. Isso só se pode dar se mantiverem genuína e verdadeira comunicação com ele [veram cum ipso et substantialem communicationem]. Cristo vive em nós de duas formas. Uma consiste em ele nos governar por meio de seu Espírito e em dirigir todas as nossas ações. A outra consiste naquilo que ele nos concede pela participação em sua justiça, ou seja, que, embora nada possamos fazer por nós mesmos, somos aceitos por Deus, nele [Cristo]. A primeira se relaciona com a regeneração; a segunda, com a espontânea aceitação da justiça, e é assim que considero a passagem. Mas se alguém, ao contrário, quiser aplicá-la a ambas, de boa vontade concordarei.
E a vida que agora vivo na carne. Dificilmente exista aqui uma cláusula que não tenha sido rasgada por uma variedade de interpretações. Alguns explicam o termo 'carne' como sendo a depravação da natureza corrupta. Paulo, porém, pretende simplesmente significar a vida corporal De outra forma, poder-se-ia apresentar a seguinte objeção: "Você vive uma vida cor¬poral; e enquanto este corpo corruptível exercer suas funções, enquanto for sustentado por comida e bebida, esta não é a vida celestial de Cristo. Portanto, é um paradoxo irracional asseverar que, enquanto você estiver vivendo uma vida humana ordinária, sua vida não é propriamente sua." Paulo replica que ela consiste na fé, o que implica que ela é um segredo oculto dos sentidos humanos. A vida, pois, que obtemos pela fé, não é visível aos olhos, senão que é interiormente perceptível à consciência pelo poder do Espírito. E assim a vida corporal não nos impede de possuirmos a vida celestial, pela fé. "E, juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais com Cristo Jesus" [Ef 2.6]. Também: "Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus" [Ef 2.19]. Uma vez mais: "Pois a nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo" [Fp 3.20]. Os escritos de Paulo estão saturados de afirmações afins, a saber: que tanto vivemos no mundo como também já vivemos no. céu; não só porque nossa Cabeça está lá, mas porque, em virtude da união [com ele], temos uma vida em comum com ele [Jo 14].

Que me amou. Esta cláusula é adicionada para expressar o poder da fé, pois imediatamente poderia ocorrer de alguém perguntar: "Quando a fé recebe tal poder para comunicar-nos a vida de Cristo?" Ele, pois, declara que o fundamento [hypostasis] sobre o qual a fé repousa é o amor e a morte de Cristo; pois é à luz desse fato que o efeito da fé deve ser julgado. Por que razão vivemos pela fé de Cristo? Porque ele nos amou e a si mesmo se deu por nós. Digo que o amor com que Cristo nos abraçou, o levou a unir-se a nós. E tal coisa ele completou através de sua morte. Ao doar-se por nós, ele sofreu em nossa pessoa[in nostra persona passus est]. Além do mais, a fé nos faz partícipes de tudo o que ela encontra em Cristo. Tal menção do amor significa o mesmo que João disse: "Nós amamos porque ele nos amou primeiro" [1 Jo 4.19]. Pois se algum mérito propriamente nosso o tivesse movido a redimir-nos, tal causa teria sido declarada. Agora, porém, Paulo atribui tudo ao amor; portanto, é gratuito. Observemos a ordem: "Ele nos amou e a si mesmo se deu por nós." É como se dissesse: "Ele não teve outra razão para morrer, senão porque nos amou", e isso se deu quando ainda éramos inimigos, segundo cie mesmo declara em Romanos 5.20.

A si mesmo se deu. Não há palavras que expressem perfeitamente o que tal coisa significa. Pois, quem poderá encontrar uma língua que possa declarar a excelência do Filho de Deus? Todavia, foi ele mesmo que a si mesmo se deu como o preço àz nossa redenção. A expiação, a purificação, a satisfação e todos os frutos que recebemos da morte de Cristo estão incluídos nas palavras: "a si mesmo se entregou".

Por mim é muito enfático. Não é suficiente considerar Cristo como havendo morrido pela salvação do mundo; cada pessoa deve reivindicar o efeito e a posse dessa graça para si pessoalmente.

Fonte: [O Calvinista]

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