quinta-feira, 20 de março de 2008
A instituição do papado romano, na visão de Erasmo de Roterdam
Prosternemo-nos, agora, aos pés do Sumo Pontífice, e beijemos-lhe religiosamente as santas pantufas. Os papas dizem-se vigários de Jesus Cristo, mas, se procurassem conformar-se à vida de Deus seu mestre; se sofressem pacientemente os seus padecimentos e a sua cruz, mostrando o mesmo desprezo pelo mundo; se refletissem seriamente sobre o belo nome de papa, isto é, de pai, e sobre o santíssimo epíteto com que são honrados – quem seria mais infeliz do que eles? Quem desejaria comprar, com todos os haveres, esse cargo eminente, ou quem, uma vez elevado ao mesmo, desejaria, para sustentar-se nele, empregar a espada, os venenos e toda sorte de violências? Ai! Quantos bens perderiam eles se a sabedoria se apoderasse por um instante do seu ânimo! A sabedoria?! Bastaria que tivessem um grãozinho apenas daquele sal de que fala o Salvador. Perderiam, então, aquelas imensas riquezas, aquelas honras divinas, aquele vasto domínio, aquele gordo patrimônio, aquelas faustosas vitórias, todos aqueles cargos, aquelas dignidades e aqueles ofícios de que participam; todos aqueles impostos que percebem, quer nos próprios Estados, quer nos alheios; o fruto de todos aqueles favores e de todas aquelas indulgências, com as quais vão traficando tão vantajosamente; aquela numerosa corte de cavalos, de mulas, de servos; aquelas delícias e aqueles prazeres de que gozam continuamente. Observai, observai quantas coisas precisariam perder, sendo que isso é apenas uma sombra da felicidade pontifícia. Todos esses bens seriam logo sucedidos pelas vigílias, pelos jejuns, pelas lágrimas, pelas preces, pelos sermões, pelas meditações, pelos suspiros e mil outros trabalhos de natureza semelhante. Acrescentemos ainda que tantos escritores, tantos copistas, tantos notários, tantos advogados, tantos promotores, tantos secretários, tantos banqueiros, tantos escudeiros, tantos palafreneiros, tantos rufiões (silêncio neste ponto, pois é preciso respeitar os ouvidos castos), em suma, toda aquela prodigiosa turba de pessoas de toda classe, que arruínam (que honram, queria eu dizer) a sé de Roma – sim, digamos também que toda essa turba só poderia esperar morrer de fome. Seria o mais bárbaro, o mais abominável, o mais detestável de todos os delitos querer reduzir à sacola e ao bastão os supremos monarcas da igreja, os verdadeiros luminares do mundo. Dizem eles que a Pedro e a Paulo competia viver de esmolas, ficando com todo o peso do pontificado, mas eles podem comodamente sustentá-lo, reservando-se eles, para si, somente o que no mesmo existe de esplêndido e de agradável. Agora, pergunto: não fazem muito bem?
Erasmo de Roterdam, in O Elogio da Loucura (Ediouro Publicações).
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